A criatividade e a Ditadura

Pensando bem: como é difícil ser criativo em tempos de democracia.

Calma! Antes de sair por aí dizendo que eu enlouqueci e que estou a fazer apologia dos anos de chumbo (de malíssima memória), leia até o final.

O que quero dizer é que nos tempos em que a "Redentora" dominava absoluta nosso direito de ir, vir, rir, pensar, falar, cantar, representar e muitas vezes, cagar, não tínhamos que ter muita criatividade para o protesto. Os milicos transformaram o Brasil no "País da piada pronta". Para driblarmos os óbices da ditadura era preciso criatividade, mas não tanta como agora em tempos de liberdade.

Alguns exemplos: O Chico cantava "apesar de você amanhã há de ser outro dia" e todos já sabiam o que ele estava dizendo; A Bethânia entoava Carcará pega mata e come durante a apresentação de Opinião e todo o público vibrava emocionado; os estudantes saiam as ruas no meio da madrugada e pichavam muros com o famoso "abaixo a ditadura" ou "reforma agrária"; os jornalistas davam um hipon na censura publicando mensagens de liberdade nas colunas de horóscopo ou previsão do tempo; os banidos davam um jeito de arrebentar um telefone público na Victoria Station em Londres e tinham linha direta com o Brasil sem gastar um tostão; os literatos conseguiam publicar seus romances recheados de duplo sentido. Era mais ou menos isso.

Hoje o buraco é mais embaixo.

Como mudar o "satus quo" reinante quando as letras de música, os textos de teatro, os protestos estudantis, a imprensa e os escritores, todos eles, têm plena liberdade para expressar o que quiserem?

Como modificar as coisas que julgamos erradas sem antes acionar a justiça (que hoje julga com equidade e de forma absolutamente técnica)?

Como atingir, dentro da lei, nossos legisladores, diante de mensalões, cuecas, privatizações espúrias, caixas dois de campanhas, robalheiras e escrotices parlamentares em geral?

Como sensibilizar governantes de que existem coisas que precisam ser feitas sem parecer um Dom Quixote?

Pois ontem, um grupo de jovens universitários da ESPM de Porto Alegre decifrou o hieróglifo. E com requintes de genialidade.

Munidos de sabão, detergente, escovas, panos e outros artefatos de limpeza e instados por um professor para que fizessem uma ação publicitária viral que chamasse a atenção da mídia, foram até o Centro da Capital.

Madrugada, passaram a limpar o Túnel da Conceição. Mas foi uma limpeza diferente: limparam somente formas de letras até que aparecesse a inscrição "POR UMA PORTO ALEGRE MAIS LIMPA". A frase ficou escrita com a cor original do túnel se não estivesse tão sujo.

Claro que no meio da ação apareceu a polícia. Deram uns safanões nos meninos e meninas. Algema. Cara no chão. Todas essas coisas que se deve fazer com pichadores. No momento em que mostraram que não estavam pichando e sim limpando, não restou outra alternativa do que olhar e aplaudir.

Resultado: se a prefeitura de Porto Alegre quiser tirar a inscrição de lá, terá que limpar o tunel para que ele volte a ter sua cor original. E não adianta limpar só em volta das letras, porque ficaria uma tarja de limpeza na parede como a gritar para todos que "olha pessoal como seria lindo um túnel limpo"!

Criatividade fudida. Meninada esperta. Jovens que para protestar em tempos de democracia usaram a cabeça e provaram para todos nós a possibilidade de encostar o poder público na parede (literalmente e sem trocadilho).

Eu, velho de guerra, fiquei mais orgulhoso ainda, quando vi que os meninos eram os colegas da minha filha. Alguns deles até conheço de churrasquinhos na minha casa.

Esses meninos têm meu respeito. Com criatividade cidadã e republicana, sem, em momento algum, perpetrarem qualquer ato que não respeitasse a lei, deram um xeque mate no Poder Público.

Prá cima deles Brasil! É Hexa!